Na data em que se celebra o Dia Mundial da Língua Portuguesa, fomos ao encontro de três gerações de timorenses falantes de português que aprenderam a língua com diferentes metodologias. Aprenderam a língua antes de 1974, depois de 24 anos de ocupação e após a restauração da independência.
“As palavras na cartilha, r-o-ro-l-a-la e dizia lakateu em tétum porque era o lakateu que estava desenhado. Era o lakateu que eu guardava na minha cabeça e no meu bolso, apanhado em perseguições dolorosas na altura das chuvadas e que de asas molhadas e cansadas eu apanhava facilmente. G-a-ga-l-o-lo. E dizia manu-aman em tétum porque era manu-aman que estava pintado sobre as cores festivas das lutas de galo aos domingos no bazar”. O excerto de Crónica de uma travessia de Luís Cardoso ilustra a forma como se aprendia português em Timor-Leste antes de 1974.
Tal como Luís Cardoso, Florindo José Cristóvão, 59 anos, nasceu na era salazarista. Nessa altura, os descendentes de Liurais eram obrigados a aprender a língua portuguesa. Antes de frequentar a escola, já sabia falar português, porque o pai o ensinou em casa. No colégio, tinham obrigatoriamente de falar português, quem não o fizesse era castigado: “Os professores, os padres leigos e os militares portugueses eram muito autoritários, usavam a palmatória e batiam-nos”.
Proibido durante 24 anos, o português era completamente desconhecido para Carlos de Jesus, revisor linguístico no Consultório da Língua para Jornalistas, que cresceu durante a ocupação indonésia. O primeiro contacto com a língua portuguesa foi em 2000, através das notícias da Lusa, quando começou a trabalhar no Timor Post. No entanto, confessa que “não tinha interesse em ler as notícias em português por não ter conhecimentos e por não gostar da língua”.
Ana Guterres, professora no Centro de Língua Portuguesa, integra o projeto FOCO. Aprendeu o português, em 2000, porque a língua portuguesa passou a ser uma língua de instrução e também uma das disciplinas. Todas as outras, na Escola Básica nº 2, Bidau Massau, eram lecionadas em língua indonésia.
Diferentes contextos de aprendizagem, a mesma língua
Carlos começou a frequentar o curso de português para jornalistas em Quintal-Boot, em 2015. “Foi muito difícil, principalmente as regras gramaticais e os tempos verbais, mas a formadora incentivou-me e esforcei-me para melhorar e consegui atingir o nível B2+”, confidenciou.
Na escola primária, Florindo recorda que “decorava os livros de fábulas, escrevia ditados e memorizava os rios portugueses e das ex-colónias portuguesas. Era muito difícil memorizar, mas fomos obrigados”.
Ana foi aluna da licenciatura em Ensino da Língua Portuguesa, na UNTL, de 2011 a 2015. Em setembro de 2016 foi estudar para Portugal, onde frequentou o mestrado de Português Língua Segunda/Língua Estrangeira, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Tal como Florindo, também Ana refere um ensino baseado na memorização e no ensino explícito da gramática: “O que eu aprendia, lembro-me perfeitamente, desde o terceiro ano do ensino básico até ao secundário, na aula de Língua Portuguesa, era apenas a gramática, mas não era aprofundada”.
Reconhece, no entanto, que a gramática é importante para realizar certas tarefas linguísticas, mas a aprendizagem da língua não se deve limitar a ela. As quatro competências da língua (ler, falar, ouvir e escrever) não eram trabalhadas na altura. Lembra que o pai, que dominava o português, a ajudava com os trabalhos de casa: “Quando tinha de conjugar verbos em casa, dava o trabalho ao meu pai e ia para a aula com as respostas todas certas, mas não compreendia nada”, confidenciou, entre risos.
Depois de acabar o ensino secundário, falava pouco português, mas escolheu a Licenciatura em Ensino da Língua Portuguesa por acreditar que teria saída profissional. Só a partir daí, sentiu que começou mesmo a aprender a língua de Camões e que o ensino da gramática foi sistematizado, exemplificado, contextualizado e aplicado. Trabalhou todas as competências, leu textos de países lusófonos e ainda frequentou as disciplinas de Didática da Língua e de Didática da Literatura.
Desde 2018, Florindo trabalha como revisor no Consultório da Língua para Jornalistas, onde tem aulas de língua portuguesa de acordo com as suas necessidades, método muito diferente daquele usado pelos seus professores quando era criança. Explicou que o formador revê as notícias já anteriormente revistas por ele e identifica os erros. A partir dos erros, cria-se a oportunidade de aprendizagem.
Para Carlos, a língua portuguesa avançou muito depois da independência: “Antes, em 2000 e 2001, eram poucas as pessoas que falavam português. Era uma percentagem muito pequena, agora muitos jovens estudam e sabem a língua portuguesa. Precisamos de os incentivar a não desistir”, reforçou. Contudo, considera o português difícil e refere que é preciso ter vontade para aprender e seriedade para ensinar esta língua desde a infância, fase em que é mais fácil adquirir várias línguas.
Para Ana, receber uma bolsa de estudo para fazer o mestrado em Portugal foi a melhor forma de aprofundar o seu conhecimento em português. “O contexto de imersão linguística e a necessidade de usar a língua no dia a dia fizeram com que, em pouco tempo, dominasse a língua de Camões e conseguisse seguir as disciplinas do mestrado”, contou, orgulhosa.
Não obstante o frio insuportável, a estranheza inicial da gastronomia portuguesa, as dificuldades em acompanhar o ritmo dos professores e ler referências em francês, Ana considera que esta experiência de dois anos foi enriquecedora e mudou a sua vida.
O português: problemas e soluções
Carlos salienta a necessidade de uma política linguística mais forte que promova a língua nos meios de comunicação social. Ressalta ainda que as escolas públicas não ensinam bem a língua portuguesa e que muitos professores não são qualificados para tal, o que o levou a matricular os filhos em escolas privadas.
“Alguns alunos, mesmo depois de se terem licenciado na UNTL, ainda não dominam o português”, refere Florindo, indignado. Para solucionar este problema, sugere que a fluência em língua portuguesa seja um requisito obrigatório para ter um emprego.
A professora do Centro de Língua Portuguesa na UNTL corrobora a ideia de Florindo. Há muitos alunos que frequentam a Licenciatura em Ensino do Português contra a sua vontade: “Se não têm paixão pela língua e por ensinar não vão ser bons professores no futuro”.
Florindo e Carlos concordam quanto à importância do português para o tétum, visto que o vocabulário do tétum não é suficiente para se expressarem em todos os contextos.
Ana recorda que, no tempo da colonização, não havia muitos recursos, mas aprendiam o português. “Agora temos muitos recursos, mas os alunos não aprendem a língua. Deve haver uma colaboração entre várias partes: o professor, o aluno e os pais devem ter um papel ativo no processo de aprendizagem”, defende.
Aprender português, para Ana, não pode ser circunscrito à sala de aula. Acredita que a aprendizagem deve ser feita para além do contexto formal. Para tal, sugere que os alunos criem as suas próprias oportunidades para aprender, por exemplo, através da audição de podcast’s em língua portuguesa.
Lamenta que os alunos licenciados em Ensino da Língua Portuguesa na UNTL não sigam a profissão, pois acredita na qualidade dos graduados e na sua capacidade de mudar o panorama do ensino desta língua em Timor-Leste. No entanto, compreende que o salário auferido noutros empregos seja mais atrativo e afaste os professores da docência. Com o objetivo de travar esta tendência, salienta a importância de se valorizar os professores, aumentando o salário e proporcionando-lhes boas condições de trabalho.
Defende ainda que, para ensinar português, é necessário não só o domínio científico, mas também a competência didática, pois a forma de transmitir os conteúdos aos alunos é essencial para o sucesso da aprendizagem.
Apesar das dificuldades, defende que aprender português é uma oportunidade: “É apenas uma questão de tempo. Aprender a língua portuguesa é uma oportunidade, escolher um curso nesta área mudou a minha vida, saber a língua portuguesa permite-me aceder também a outros conhecimentos. A nível profissional, hoje em dia, tenho um lugar que muitos querem, trabalho num centro de língua na única universidade pública em Timor-Leste. É um privilégio voltar a trabalhar no lugar onde comecei a trilhar os primeiros passos”, relatou, emocionada.
Como cidadã timorense e consciente de que a língua portuguesa está consagrada na Constituição como língua oficial, a par do tétum, considera que é um dever de todos os cidadãos promoverem-na, mas também é uma obrigação do Governo proporcionar oportunidades para que as pessoas a possam aprender.
Luís Cardoso, o menino que não reconhecia palavras tao simples como “galo” e “rola”, transformou-se no expoente máximo da literatura timorense em português. A propósito do Dia Mundial da Língua Portuguesa, diz: “Há um fenómeno na natureza que sempre me encantou que é a formação da pérola. Um objeto estranho introduz-se num bivalve, o que provoca da parte deste uma reação. Em vez de gastar a sua energia em expulsá-lo, faz uma coisa ainda mais extraordinária que é transformá-lo numa pérola. É isto que faço com a língua portuguesa. Não sendo a minha língua materna, pouco a pouco, através do meu encanto e trabalho, fiz dela a minha língua”. É o caminho que cada vez mais timorenses estão a construir. (CLJ)
1,166 total views, 6 views today






