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O futuro que a educação não garante

Timor Post - Jeral
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Reportagem de Isaura Lemos de Deus

A qualidade da educação é um problema em Timor-Leste, sobretudo nas escolas públicas. Nos 5.º e 6.º anos, há alunos que não sabem ler nem conseguem fazer operações aritméticas simples. O fraco investimento no setor, as más condições das escolas e a falta de preparação dos professores travam o desenvolvimento do país.

Dedo na revista. “Ha… Ha… Harry… gos…ta… han… sa… sa… bê u… bu… erre a, kapa a, bê”. Não consegue juntar as sílabas. Repete: “sa… sa… bê u… bu… erre a, kapa a, bê”. Passado um minuto, chega à palavra “eskaruska”. São cerca de dois minutos para ler uma frase de quatro palavras da “Lafaek”, uma revista do 1.º e 2.º anos do 1.º ciclo. O que a menina devia ter lido era “Harry gosta han saburaka” (O Harry gosta de comer a tangerina). Não é aluna do 1.º ano. Tem 11 anos e está no 6.º ano da Escola Básica Filial (EBF) do Paiol, mas ainda não sabe ler. Soletra apenas.

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“Dois vezes dois são seis”, dizem dois meninos, negociando depois com a jornalista ajuda para fazer as contas indicadas pela professora, na Escola Básica Filial (EBF) de Rumbia. São alunos repetentes do 5.º e não sabem ler nem dominam operações aritméticas básicas do 1.º ano.

Os primeiros anos de escolaridade são as fundações de todo o percurso escolar, mas estas três crianças e muitos outros meninos timorenses veem o seu futuro comprometido. Segundo dados apresentados pelo ex-Primeiro-Ministro, Rui Maria Araújo, na abertura do 3.º Congresso Nacional da Educação, realizado em 2017, as taxas de repetência e abandono escolar são elevadas em Timor-Leste, especialmente entre os alunos dos primeiros ciclos do ensino básico. Uma avaliação da leitura dos primeiros anos do ensino básico, realizada em 2009, constatou que mais de 70 % dos estudantes no fim do primeiro ano não conseguiam ler nenhuma palavra de um texto simples em português ou tétum. Só 40% o conseguiam fazer no final do segundo ano. No 3.º ano, apenas um terço dos alunos podia ler 60 palavras por minuto e responder corretamente a perguntas simples de compreensão.

Na Escola de Rumbia, as salas de aula não chegam para tantos alunos.

Vários fatores afetam a qualidade de ensino. A herança colonial foi pesada. Durante a colonização portuguesa, o interesse na educação foi reduzido. Segundo o artigo “A História da Educação no Timor-Leste e os seus distintos Processos de Alfabetização” de Nilce Silva, em 1974, existiam em Timor-Leste apenas 454 escolas e 60 mil alunos. Só uma elite timorense podia concluir o secundário ou prosseguir os estudos em Portugal. A Indonésia quis que todos os timorenses tivessem acesso ao ensino primário e, em 1985, quase todas aldeias tinham uma escola primária. No entanto, apesar de a educação chegar a mais pessoas, não se verificou também um aumento de qualidade. Em 1999, além das cerca de 80 a 90% das escolas e infraestruturas escolares destruídas, o setor da educação viria a perder grande parte dos seus professores, pois 90% dos docentes do secundário e 20% dos primários eram indonésios.

O passado de Timor-Leste traz à memória o exemplo de Singapura. Constituído por imigrantes chineses, malaios e indianos, quando se tornou independente, em 1965, as taxas de analfabetismo eram elevadas e também só uma elite tinha tido acesso a educação durante o passado colonial. Pobre e sem recursos naturais, o país compreendeu que tinha de investir nas pessoas. O objetivo era criar um país multilingue unido no inglês e especializar trabalhadores para as fábricas. Nesse ano, Singapura investiu 28,8% do seu orçamento em educação, sendo 59% destinados ao ensino básico. Passadas décadas, o setor educativo ainda recebe uma fatia orçamental de 20%. O ensino atrai os melhores alunos na universidade e os professores são altamente qualificados. Atualmente, a educação de Singapura é uma das melhores do mundo e contribuiu decisivamente para transformar o país numa potência económica.

Não parece ser esse o caminho que Timor-Leste está a seguir. Os 16 anos de independência têm mostrado um fraco investimento no setor da educação. Para Vicente Paulino, Professor da Universidade Nacional de Timor-Leste (UNTL), um dos principais problemas da educação em Timor-Leste é o reduzido orçamento.

“O principal fundamento para melhorar a educação em Timor-Leste é aumentar o orçamento para o setor, porque atualmente é apenas de 6%. Isso não ajuda nada. Não desenvolve nada e não muda nada no sistema educativo”

Vicente Paulino

Em declarações ao Timor Post, em maio do ano passado, a então Vice-Ministra da Educação, Lurdes Bessa, afirmava também que uma melhoria da educação em Timor-Leste exigia uma maior fatia do orçamento para este setor. “Tem de haver Orçamento de Estado suficiente. O Orçamento de Estado devia representar, para a educação, entre 13 a 20%. O orçamento andou sempre entre os 4% e 7%”, defendeu.

Escolas onde falta quase tudo, até espaço

Os 16 anos de independência não conseguiram resolver os problemas mais simples, como as infraestruturas, mobiliário e até os manuais escolares. São frequentes as notícias de escolas sem mesas ou cadeiras suficientes, água canalizada ou livros.

Na sua intervenção no 3.º Congresso Nacional da Educação, Rui Maria de Araújo, defendeu, porém, que Timor-Leste tinha investido nas infraestruturas escolares. “Vimos aumentar significativamente o número de escolas: em 2011 tínhamos 943 escolas em 2016 temos 1.715, o que significa mais 772 infraestruturas. Equipámos as escolas dos ensinos básico, secundário e politécnicos com cerca de 98.500 conjuntos de mesas e cadeiras e distribuímos mais de 957 mil manuais e materiais didáticas para os diversos níveis de ensino”, revelou.

A ex-vice-ministra Lurdes Bessa reconheceu, contudo, ao Timor Post, que as escolas possuem problemas graves ao nível das condições físicas. “Verificámos que, em algumas escolas, não havia condições. As autoridades, o ministério, as organizações e os próprios pais procuraram resolver o problema, mas não é suficiente para o ensino. As condições das escolas, em geral, são de emergência. Visitei uma escola no Suai sem cadeiras e mesas, neste ano de 2018”, disse a então Vice-Ministra aos jornalistas, a 22 de maio de 2018, em Vila Verde.

A merenda escolar nem sempre chega e, por vezes, a qualidade é duvidosa.

A EBF do Paiol e a EBF da Rumbia não são as escolas mais desfavorecidas, mas deparamo-nos com más condições. Só têm salas de aula e de professores. Não há biblioteca em nenhuma delas No Paiol, a minúscula sala de professores está atulhada de livros, garrafas e caixas. Nem todos os docentes se podem sentar e os que o fazem estão apertados. A falta de salas obriga a que em Rumbia cada turma tenha 60 alunos por turma, uma média de três por carteira, e no Paiol 50. Na EBF da Rumbia as cadeiras e mesas não chegam para todos os alunos. Alguns são obrigados a sentar-se junto da professora para escrever, enquanto os restantes têm de ficar colados.

O Coordenador da EBF da Rumbia, Abílio Pereira da Conceição, reconhece as dificuldades logísticas. “As condições das infraestruturas desta escola são mínimas, porque tem apenas seis salas, mas o número da população escolar aumenta de ano para ano, por isso as salas não chegam para todos”, conta. Uma equipa de peritos do Ministério da Educação, Juventude e Desporto já foi ver a sua escola, mas verificou que não havia espaço para construir mais salas.

A falta de espaço é também um problema no Paiol. O Coordenador da EBF do Paiol, Domingos Gusmão, conta que não podem ter uma biblioteca e laboratório por falta de terreno. Nenhuma das escolas tem muro e a população entra e sai do recinto escolar à vontade. “Ainda não temos um muro à volta da escola, por isso há sempre perturbação das pessoas, que entram e saem como querem, pois a escola não tem pessoal de segurança”, conta o Coordenador do Paiol.

Em Rumbia, as pessoas passam e gritam ao lado da escola, o que provoca a desconcentração dos alunos. Os habitantes continuam a vender em frente deste estabelecimento de ensino, colocam lá as cabras a pastar e deixam o lixo acumulado no recinto.

Nas duas escolas, ainda faltam livros e manuais, o que significa que todos os conteúdos têm de passar pelo quadro e o registo fica apenas no caderno. Com a reforma curricular de 2015, os professores usam apenas sebentas, os Planos do Professor, que definem os conteúdos e a forma como são lecionados. Esta situação desagrada os docentes, que se sentem com menos meios para ajudar os alunos e dizem que precisam de manuais. “Não temos livros ou manuais para consultar. Temos apenas um plano”, diz uma das professoras.

Num país em que a má nutrição provoca uma das mais altas taxas do mundo de nanismo, um problema que afeta também desenvolvimento cerebral e a aprendizagem na escola, a merenda escolar nem sempre chega às crianças. Na EFB do Paiol, no início do ano escolar, esta refeição só foi distribuída durante quatro dias e parou depois por falta de orçamento.

O Coordenador da EBF da Rumbia conta que na sua escola não há neste momento merenda escolar e que nem sempre é fornecida. “A merenda escolar é um pouco difícil, porque o fornecimento não é contínuo, mas espero, no início do ano letivo, começar a realizar este programa. Queremos combater a má nutrição da população, porque a merenda escolar é um tratamento de saúde. Às vezes, as crianças não tomam o pequeno-almoço em casa”, diz.

Contudo, mesmo quando os alunos conseguem comer na escola, os pais queixam-se da falta de qualidade dos alimentos e da confeção. “A merenda escolar da EBF da Rumbia não tem higiene, porque o próprio reservatório de água não é limpo, por isso provoca dores de barriga no meu filho”, conta a mãe de um aluno da escola.

Aulas onde muitos alunos não aprendem

Muitos alunos não estão a aprender nas aulas. Uma das razões apontadas pelos professores é a carga horária reduzida. São apenas 45 minutos diários por disciplina, que impossibilitam acompanhar os estudantes com mais dificuldades, tarefa ainda mais dificultada com turmas numerosas e sem manuais.

Apesar de o Coordenador da EBF da Rumbia defender que a carga horária é suficiente, pois “todos os professores têm os planos bem feitos e exercem as suas funções como previsto”, a professora Clarícia Jerónimo desta escola considera o tempo insuficiente.

“Quarenta e cinco minutos não são suficientes para uma sala de 60 alunos, porque é difícil controlar e fazer a correção dos trabalhos das crianças e dos seus apontamentos. Não consigo dar a volta para ver o trabalho de todos os meus alunos. Apenas quatro ou cinco e, de repente, o sino toca”

Professora Clarícia Jerónimo

Também a mãe do aluno tem a mesma opinião da docente. “Não posso dizer nada. Quarenta e cinco minutos para ensinar uma disciplina não chegam para os nossos filhos”, afirma, com a voz embargada e quase a chorar.

Os alunos timorenses passam pouco tempo em aulas e, dentro da sala, recebem pouco acompanhamento, o que agrava as dificuldades de muitos. Laurinda Sousa, professora de Língua Portuguesa da EBF do Paiol, diz que ainda está no início do ano e, por isso, ainda não conhece bem os seus alunos do 6.º ano, mas já traçou um diagnóstico:

“Numa turma de cerca de 50 alunos [do 6.º ano], só seis conseguem responder às perguntas e ler”.

Professora Laurinda Sousa

Em Rumbia, segundo a professora Clarícia, o cenário não parece tão negro. Ainda assim, entre as 60 crianças, cerca de 30 não sabem ler e nem sequer conseguem fazer a divisão silábica. “Aqui nesta turma alguns dos meus alunos sabem responder, mas não sabem fazer contas. A multiplicação e subtração são muito difíceis. Só conseguem fazer adição”, acrescenta a professora, sem esconder o desalento.

Questionada sobre as estratégias para resolver este problema, Clarícia diz que é necessário conhecer as capacidades dos alunos, antes de aplicar uma estratégia. “Tenho de fazer uma avaliação dos meus alunos para conhecer bem as capacidades destas crianças e continuar com a nova matéria”, afirma.

A professora Laurinda do Paiol refere, por sua vez, o seu empenho para ensinar os alunos. “Tenho de me esforçar muito para ajudar os meus alunos e para que saibam escrever e ler. Por exemplo, tenho de soletrar as palavras e fazer a divisão silábica”, diz.

Vicente Paulino, académico da UNTL, é crítico relativamente às metodologias dos professores. “Em relação às crianças que ainda não sabem ler e escrever, este é um problema que se deve aos professores do ensino básico, porque se concentram apenas nos manuais didáticos e a fazer ditados para os seus alunos escreverem, mas os professores têm obrigação de criar um mecanismo para os incentivar e obrigar a ler e a escrever”, diz.

“Hoje em dia, os nossos professores dificilmente compreendem as metodologias de ensino e aprendizagem e não usam o conceito chamado ‘aprender a fazer’, o que significa que têm de ensinar e, ao mesmo tempo, ajudar os alunos a aprender”, acrescenta.

Também a mãe do aluno da EBF da Rumbia não está satisfeita com as aulas dadas pelos professores desta escola, acusando-os de ensinarem diariamente apenas uma disciplina às crianças, quando deveriam ter três. Para a encarregada de educação, é o facto de os docentes não ensinarem que leva a que os alunos tenham dificuldades em operações aritméticas simples, sobretudo adição e multiplicação. “Depois de saírem da escola, verificamos os apontamentos dos nossos filhos, mas só ensinam uma matéria. Quando lhes perguntamos, afirmam que só fizeram aquilo”, conta.

A estes problemas, junta-se a violência que ainda existe nas escolas e que desmotiva os alunos.

“Gosto muito da escola, mas, quando não sabemos ler, os professores batem”

Aluno de 12 anos de Rumbia

“Quando não sabemos a matéria de Matemática, de Língua Portuguesa e de Estudo do Meio, a professora bate, mas gosto de Matemática”, acrescenta outro de 13 anos, envergonhado.

A formação científica e pedagógica dos professores é outro problema de difícil resolução. A partir de 1999, para fazer face à carência de professores, foram recrutados voluntários, grande parte com apenas o ensino primário concluído. Em 2007, 75% dos 12 mil professores não possuíam qualificações suficientes. Em 2008, 3 mil docentes receberam formação e, em 2009, mais 9 mil.

O Coordenador da EBF do Paiol conta que todos os professores da sua escola concluíram o bacharelato no INFORDEPE ou se licenciaram. Também o responsável da EBF de Rumbia refere que a maioria dos professores tem qualificações superiores e lembra que nas férias recebem formação.

Vicente Paulino defende que a formação de professores é essencial. “É preciso apostar na formação dos professores, não só em Língua Portuguesa, mas em diversas áreas como Matemática e Biologia, porque a obrigação dos professores é incentivar os alunos a lerem os textos e a encaminhá-los com uma pedagogia colaborativa. Os professores não se podem centrar apenas nos manuais didáticos. Devem ser criativos e procurar várias informações em outras dimensões didáticas, como os jornais, televisão, conjugando-os com os materiais que estão nos manuais”, diz.

Para o académico, seria importante criar uma Escola Superior de Educação de raiz, com vários departamentos que permitissem formar bons professores e desenvolver a educação em Timor-Leste. “A escola de raiz do ensino superior de educação teria vários departamentos que pudessem produzir bons professores para o desenvolvimento da educação em Timor. Por exemplo, seria criado um departamento pré-escolar, porque se sabe que a educação se deve iniciar a partir do ensino pré-escolar. Também teria o departamento do ensino básico, com várias disciplinas, como Língua Portuguesa, Matemática, Biologia e Química. Estas permitiam produzir professores qualificados destas disciplinas específicas no 2.º e 3.º ciclos do ensino básico”, afirma.

Para Vicente Paulino, a melhoria da educação em Timor-Leste implica a participação de vários intervenientes, sobretudo do Ministério da Educação, Juventude e Desporto, que “deve apostar numa política integrada que conduza o sistema educativo para a globalização”.

Como referiu José Ramos-Horta, no 3.º Congresso da Educação, “o futuro garantido não vem do petróleo, do gás, não vem dos diamantes. Nada. O futuro garantido vem da educação, das nossas capacidades, da nossa cabeça”. Isso um dos meninos que entrevistámos não sabe, mas já pensa no futuro. No 5.º ano, não lê nem consegue fazer operações aritméticas simples, mas tem sonhos: “Quando for grande, quero ser operador de câmara”. Resta saber a quantas mais gerações o fraco investimento na educação, a falta de condições e materiais didáticos nas escolas e a má preparação dos professores continuarão a roubar sonhos.

 

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